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Dalton Trevisan

Dalton Trevisan

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Dalton Trevisan: O Espião de Almas que Transformou a Literatura Brasileira

Considerado um dos maiores contistas da literatura brasileira, Dalton Trevisan, o eterno “Vampiro de Curitiba”, deixou um legado imensurável que continua a ecoar pelas ruas e becos da cidade que tanto amou e retratou. Embora tenha nos deixado em dezembro de 2024, aos 99 anos, sua obra permanece viva, provocadora e essencial, especialmente quando celebramos o que seria seu centenário.

Longe dos holofotes e cercado de mistério, Trevisan cultivou uma imagem reclusa, que apenas aumentava a mística em torno de sua figura. No entanto, por trás da fama de “vampiro”, revelavam-se um homem dedicado à perfeição literária, fã de Beatles e Bezerra da Silva, e com um olhar único para a alma humana.

O Cotidiano em Curitiba: Palco e Inspiração

A vida e a obra de Dalton Trevisan estão intrinsecamente ligadas a Curitiba. A cidade não era apenas um cenário, mas uma personagem viva em seus contos. Nos últimos anos, ele viveu em um apartamento iluminado na Alameda Doutor Muricy, no Centro – um contraste com a escuridão associada ao seu apelido.

Antes disso, passou 65 anos no casarão na Rua Ubaldino do Amaral, um local que se tornou ponto de peregrinação para fãs e hoje se projeta como futuro espaço cultural (saiba mais sobre a Casa Dalton Trevisan). Esses endereços, assim como a Livraria do Chain e a Casa das Bolachas (onde pedia sempre bolo de laranja com café com leite), eram parte de sua Curitiba particular, explorada e dissecada em sua prosa.

# Dalton Trevisan

Dalton Trevisan em sua juventude. Fonte: Reprodução/Arquivo Pessoal

O Rigor do Artesão Literário

Mais do que um escritor, Dalton era um artesão incansável de suas próprias palavras. Ele passava dias, meses, anos revisitando e reeditando seus textos. Esse preciosismo era uma busca incessante pela concisão e pelo impacto perfeito em cada frase, em cada conto.

Em seu apartamento, cercado por livros (inclusive um exemplar de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, meticulosamente anotado com cada leitura), Dalton mantinha uma rotina de leituras intensas, assistia a um ou dois filmes por dia e se dedicava à reedição. Até os ensaios de peças teatrais baseadas em sua obra recebiam seu olhar crítico e exigente.

Sua amiga e representante editorial, Fabiana Faversani, testemunhou de perto essa dedicação:

“O Dalton foi o meu melhor amigo durante 20 anos. Eu aprendi muito com ele. A gente teve trocas incríveis também, porque, a partir de um certo período, ele ficou um pouco mais recluso por causa da idade. Eu acabava levando muita coisa do mundo: levando notícia de jornal, levando histórias… Acho que isso mudou meu jeito de ver as coisas. Agora sempre tem um pouquinho dessa lente do Dalton.”

Além do Vampiro: Vida, Amizades e Aversão à Fama

A fama de “Vampiro de Curitiba” surgiu com o título de uma de suas obras mais célebres e pegou devido à sua notória aversão a entrevistas e aparições públicas. Para Dalton, o foco devia ser a obra, nunca o autor. Ele encarava essa reclusão com bom humor, como demonstrou em cartas a amigos como Millôr Fernandes.

Quem o conheceu de perto, como o amigo Aramis Chain, sabia que não se tratava de antipatia, mas de uma recusa genuína ao papel de celebridade. Seus prêmios, como o Prêmio Camões e o Jabuti, ficavam discretamente em casa.

Contrariando a imagem sedentária do vampiro, Dalton foi um esportista na juventude e mantinha pesinhos de academia em casa. Casado e pai de duas filhas, ele desfrutava da companhia de um cachorro e de seus interesses variados, que incluíam cinema (gostava de terror e comédias italianas) e música.

Um Guerrilheiro Cultural e a Parceria com Poty Lazzarotto

Desde cedo, Dalton Trevisan demonstrou seu ímpeto literário. Antes dos 20 anos, já publicava e atuava como repórter e crítico de cinema. Em 1946, lançou a revista Joaquim, que se tornou um marco ao projetar Curitiba no cenário literário nacional, contando com colaborações de peso como Vinicius de Moraes e Mário de Andrade.

Outra parceria fundamental foi com o também paranaense Poty Lazzarotto. Poty, conhecido por retratar uma Curitiba ensolarada, conseguiu, pela “telepatia” da amizade, traduzir visualmente a atmosfera noturna e complexa dos contos de Dalton – um pacto artístico raro e poderoso.

Antes de ser publicado por grandes editoras, Dalton era um “guerrilheiro cultural”, editando e distribuindo seus próprios “caderninhos” de contos, construindo uma popularidade inicial de forma autônoma.

A Obra: Denúncia, Crítica e Atualidade

Drogas, violência urbana e violência contra a mulher são temas recorrentes nos contos concisos e impactantes de Dalton Trevisan. Sua literatura, muitas vezes vista como polêmica, é revisitada hoje sob a ótica da denúncia social – um espelho implacável das fraquezas e angústias humanas.

Apesar de a crítica literária por vezes ter se “repetido” em sua leitura, vendo apenas um lado do autor, admiradores e estudiosos defendem que Dalton se renovou constantemente. Sua exposição “Espião de Almas”, organizada postumamente, revela novas camadas e facetas desse mestre do conto.

Dalton Trevisan não ronda mais fisicamente pelas ruas de Curitiba, mas seus personagens e a essência de sua obra continuam a perambular pelo imaginário da cidade e da literatura brasileira. Cada beco, cada conversa, pode ter um eco de Dalton.

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