
De Uruburetama a Veneza: A Incrível Jornada de Florinda Bolkan, a Estrela Brasileira que Conquistou a Itália

Imagine uma jovem do Ceará, com o nome de Florinda Soares Bulcão no registro, trocando o calor de Uruburetama pelo vaivém de um balcão de embarque da Varig. Essa não é uma ficção, mas o prólogo de uma das mais fascinantes trajetórias do cinema mundial. A história de como essa mulher se tornou Florinda Bolkan, uma estrela que brilhou intensamente na Itália, é um roteiro sobre talento, disciplina e a coragem de ser estrangeira sob os holofotes.
O Salto do Ceará para o Mundo
Nascida em 1941, filha de um intelectual cearense, Florinda cresceu entre Fortaleza e o Rio de Janeiro. Sua primeira janela para o mundo não foi uma tela de cinema, mas a cabine de um avião. Como comissária da Varig, ela colecionou cidades e aprendeu a ler o mapa-múndi antes de ser lida pelas câmeras. Foi nesse trânsito que o sobrenome se adaptou à fonética europeia: Bulcão virou Bolkan. O tempero do Ceará, no entanto, permaneceu intacto.
A Descoberta em Roma e o Brilho em Veneza
Em 1968, Roma se tornou seu endereço definitivo. A cidade, efervescente entre a contracultura e a tradição de Cinecittà, foi o palco de sua grande virada. Apresentada ao lendário diretor Luchino Visconti pela produtora Marina Cicogna, sua beleza singular e seu silêncio expressivo capturaram a atenção da sétima arte italiana.
O estrelato não demorou. Após papéis iniciais, Florinda Bolkan se consagrou com atuações que exploravam uma força contida e uma presença magnética. Dois filmes, em especial, definiram seu lugar no panteão do cinema:
- Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto (Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, 1970): Neste clássico de Elio Petri, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, ela interpreta a amante que se torna o estopim de uma trama sombria sobre poder e corrupção.
- Anonimo Veneziano (Anônimo Veneziano, 1970): Foi neste melodrama filmado nas melancólicas e deslumbrantes paisagens de Veneza que Florinda se imortalizou. Sua atuação como Valeria lhe rendeu o primeiro prêmio David di Donatello, o Oscar do cinema italiano. A atriz brasileira havia conquistado o coração da Itália em sua cidade mais poética.

Uma Estrangeira Premiada e Respeitada
O sucesso de Florinda Bolkan não foi um caso isolado. Ela se tornou a primeira atriz estrangeira a vencer o David di Donatello de Melhor Atriz, um feito que repetiu em 1973 por Cari Genitori. Seu talento foi reconhecido até mesmo nos Estados Unidos, onde recebeu o prêmio de Melhor Atriz da LAFCA (Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles) por Una Breve Vacanza (1973), do mestre Vittorio De Sica.
Dizem que De Sica viu nela “olhos de quem conheceu a fome”, uma frase que definia não a carência, mas uma profunda ética de trabalho e uma intensidade que a câmera amava.
Legado, Retorno e a Vida Além das Telas
Durante décadas, Florinda formou com Marina Cicogna uma das parcerias mais influentes do cinema europeu, uma aliança afetiva e profissional que desafiou as convenções da época. Nos anos 80, ela se tornou um rosto popular na TV italiana com a série La Piovra, consolidando seu status de ícone.
O Brasil, no entanto, nunca a esqueceu, e ela também não esqueceu suas raízes. Em 1987, protagonizou a minissérie A Rainha da Vida na Rede Manchete e, anos mais tarde, aventurou-se na direção com o filme Eu Não Conhecia Tururú, filmado integralmente no Ceará, num gesto de amor à sua terra natal.
Hoje, a rota de Florinda Bolkan – de Uruburetama a Veneza, de Roma ao mundo – permanece como um testemunho poderoso. Ela não foi apenas uma atriz exótica para o mercado europeu; foi uma artista que subverteu expectativas, que levou a gravidade do sertão para os canais venezianos e que construiu, com disciplina e mistério, uma carreira inesquecível. Uma verdadeira estrela, cuja luz ainda ilumina a história do cinema.
Compartilhar: