
Pssica na Netflix: O Dilema da Amazônia Entre o Cenário Exótico e a Narrativa Viva

Pssica na Netflix: O Dilema da Amazônia Entre o Cenário Exótico e a Narrativa Viva
A chegada da série Pssica à Netflix trouxe à tona não apenas uma narrativa intrigante baseada no excelente livro de Edyr Augusto, mas também reacendeu um debate crucial e de longa data no audiovisual brasileiro: como a Amazônia é (ou deveria ser) retratada nas telas? Longe de ser apenas um sucesso de audiência, a Pssica série tornou-se o epicentro de uma discussão vital sobre representação, autenticidade e o controverso “olhar de fora”.
O Fenômeno Pssica: Entre Elogios e Críticas Contundentes
Desde sua estreia, a série Pssica tem gerado burburinho. Parte da produção assinada por Fernando Meirelles, que, em entrevista, declarou a Amazônia como a “moda” do audiovisual, e a série como um “legado” para o Pará, o que provocou uma onda de indignação local. Conselheiros de cultura e a própria população do estado questionaram o suposto legado, cobrando relatórios e levantando a voz nas redes sociais sobre problemas entre equipes paulistas e talentos locais.
Mas, afinal, o que significa “psica”? Para o público não-amazônida, é bom saber: “Psica”, com apenas um ‘s’, é uma gíria da região que significa “jogar praga”, desejar má sorte. Uma ironia, talvez, para a recepção da série que, intencionalmente ou não, parece ter lançado uma “psica” sobre a forma como o Norte do Brasil é representado.
O Olhar de Fora: Clichês e a Redução da Complexidade Amazônica
O problema central levantado por produções como Pssica não é a presença de olhares externos. Pelo contrário, o diálogo entre culturas é enriquecedor. A questão reside na forma desse olhar: muitas vezes filtrado por códigos narrativos do eixo Rio-São Paulo, que parecem “transplantar” uma estética já pronta para a Amazônia, como se a região fosse apenas um cenário genérico, um estúdio a céu aberto.
Em vez de mergulhar nas riquezas sociais, culturais e históricas do território, a série Pssica, e outras produções similares, acabam por reduzi-lo a clichês desgastados: a violência difusa e inexplicável, o erotismo do proibido ou uma natureza ora ameaçadora, ora apenas exótica. Cenas como a da personagem de Pssica sendo alertada que na cidade não há espaço para rede, ou a representação forçada do açaí em praças, soam como preguiça de pesquisa ou um desdém pela realidade local.
A crítica não é vazia. Ao optar por esses atalhos, o audiovisual brasileiro reforça uma desigualdade histórica, tratando a Amazônia como mero objeto de consumo simbólico, e não como um sujeito plural de suas próprias histórias. As populações locais tornam-se figurantes, suas vozes silenciadas em nome de uma narrativa externa já predefinida.
Em Busca de uma Narrativa Autêntica: O Protagonismo Amazônida
É inegável que o cinema e a televisão brasileiros ainda tateiam na compreensão da Amazônia como um polo de pensamento, linguagem e estética. A oralidade própria, a relação singular com o tempo e o espaço, o imaginário rico e a fluidez entre o real e o fantástico – tudo isso poderia, e deveria, gerar novas formas narrativas, mas frequentemente é deixado de lado.
Existem, no entanto, exemplos de um esforço mais cuidadoso e respeitoso. Filmes como Pureza (2022) e Manas (2024), por exemplo, demonstram que é possível contrabalançar o olhar externo com um profundo respeito pelo local, gerando uma conexão mais autêntica com o espectador amazônida. Contudo, o ideal é que essas histórias sejam contadas e produzidas pelas próprias produtoras locais, garantindo uma representação verdadeiramente intrínseca.
A batalha é desigual. Enquanto produtoras do Sudeste gozam de portas abertas e facilidades, as empresas locais enfrentam obstáculos gigantescos. Esse desequilíbrio é acentuado pela luta de grandes produtoras para diminuir ou extinguir cotas regionais, um retrocesso que ameaça ainda mais a diversidade do nosso audiovisual.
Enquanto a Amazônia for vista apenas como uma paisagem para consumo rápido, ela continuará a ser distorcida. O verdadeiro desafio é romper esse ciclo. O futuro do audiovisual brasileiro depende de um cinema e de uma televisão que não apenas filmem a Amazônia, mas que a narrem a partir de dentro, permitindo que suas múltiplas vozes se tornem protagonistas de suas próprias e ricas histórias.
Para aprofundar a discussão sobre a representação da Amazônia no cinema, confira artigos especializados e análises críticas em veículos como a Ecoa UOL e plataformas de crítica cinematográfica.
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