
Senna: Mais Que Herói? Uma Visão Íntima Sobre o Ídolo e Seu Legado na F1

A Manhã que Parou o Brasil: Recordando 1º de Maio de 1994
Naquela manhã de 1º de maio de 1994, o destino me levava a um ateliê em Jundiaí, a poucos quilômetros de São Paulo. A bordo de uma moto com um amigo, notei algo incomum nas estradas: o trânsito lento, o silêncio perturbador e rostos marcados pela dor dentro dos carros. Muitos choravam. A sensação era clara: algo terrível havia acontecido. Embora os domingos fossem tradicionalmente reservados para acompanhar os GPs de Fórmula 1, especialmente desde a chegada de Ayrton Senna à McLaren em 1988, naquele dia, a imagem do grave acidente em Ímola no dia anterior pairava na mente. A confirmação da notícia da morte de Senna só viria mais tarde, consolidando a comoção que o transformaria no que muitos chamariam de herói nacional.
Senna: Herói ou Ídolo Humano? A Complexidade de um Legado
Ayrton Senna da Silva, um herói? A frase de Bertolt Brecht – “Infeliz da nação que precisa de heróis” – ecoa em mim. Confesso que, para mim, a ideia de consagrá-lo postumamente como herói sempre pareceu complexa. Ayrton foi, sem dúvida, o piloto mais brilhante de sua era, reverenciado globalmente por seu talento inigualável. Sua partida prematura em Ímola gerou uma onda de luto sem precedentes. Seu funeral em São Paulo mobilizou cerca de 3 milhões de pessoas, um número estarrecedor que superou até mesmo a despedida de Pelé, outra lenda do esporte.
Contudo, para além do mito, Ayrton Senna não se via (ou não precisava ser visto) como um herói no sentido clássico. Ele era um profissional implacável, dedicado de corpo e alma à sua arte. Após cada treino, cada corrida, ele mergulhava nas planilhas, comparando desempenhos, buscando limar cada centésimo de segundo nas curvas. Foi essa dedicação obstinada que o levou a conquistar três títulos mundiais, 41 vitórias memoráveis, 65 pole positions e 80 pódios ao longo de uma década na F1.
Memórias Vivas: Encontros com Ayrton
Tive o privilégio de conviver com Ayrton por duas temporadas e, posteriormente, como vizinho em São Paulo. Nessas ocasiões, pude testemunhar de perto seu domínio quase sobrenatural sobre a máquina. Lembro-me de uma noite, um ano antes do trágico acidente, voltando para casa. Vi o Honda NSX preto de Ayrton parado em um semáforo na Avenida Angélica. Parei minha Saveiro ao lado, trocamos provocações leves. Ele me contou que tinha uma “bomba” a revelar – sua saída da McLaren e um futuro teste com um carro de F-Indy nos EUA.
Subimos a avenida lado a lado, em marcha lenta. Ayrton, relaxado, debruçado no banco do carona com uma mão no volante, manteve o NSX milimetricamente alinhado à minha Saveiro durante todo o percurso. Era uma demonstração casual, porém assombrosa, de seu controle absoluto.
Reverência e Revelações Íntimas
Também presenciei a devoção genuína dos fãs de todas as camadas sociais e origens por Ayrton Senna. Em 1988, após sua primeira vitória no GP de Suzuka que lhe garantiu o título, vi Soichiro Honda, o lendário fundador da Honda (cujos motores equipavam a McLaren MP4/4), inclinar-se em profunda reverência ao piloto brasileiro. Uma cena que, por si só, falava volumes sobre o impacto de Ayrton.
Foi a bordo do helicóptero de Soichiro Honda que ouvi de Ayrton uma revelação particularmente tocante e enigmática. Em 1989, no mesmo voo para o Japão, ele me ofereceu carona de Tóquio a Suzuka na aeronave particular do magnata. Pouco antes de pousar no heliponto do circuito, ele pediu ao piloto para pairar no ar, apontou para um ponto no horizonte e disse, visivelmente consternado: “Foi nesse lugar que Deus surgiu para mim”. Uma confissão íntima que guardei comigo por anos.
Mais Que um Herói, Um Irmão
Passei horas remoendo essa conversa após chegar ao hotel, cheguei a escrever um texto longo, mas decidi não publicá-lo na época. Cinco anos depois, naquele fatídico 1º de maio, a dor foi a de perder alguém da família, não um herói distante. A comoção pela morte de Ayrton Senna foi imensa, mas a minha conexão com ele, construída através de momentos reais e compartilhados, era a de ter perdido um amigo, um colega, quase um irmão.
O legado de Senna na Fórmula 1 e no esporte mundial é inegável, pautado pela excelência, coragem e um talento inato. Ele inspirou milhões. Mas as memórias que carrego são as de um homem complexo, incrivelmente dedicado, e com momentos de profunda sensibilidade. Um ídolo, sim. Um herói, talvez para a nação que precisava dele. Para quem o conheceu de perto, era simplesmente Ayrton.
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