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Tenório Jr.: O Desfecho de um Mistério de Quase 50 Anos que Marcou a Música Brasileira

Tenório Jr.: O Desfecho de um Mistério de Quase 50 Anos que Marcou a Música Brasileira

temp_image_1757796903.095347 Tenório Jr.: O Desfecho de um Mistério de Quase 50 Anos que Marcou a Música Brasileira

O Brasil e o mundo da música brasileira amanheceram com uma notícia que encerra quase cinco décadas de incertezas: o corpo do lendário pianista Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o icônico Tenório Jr., foi finalmente identificado. Desaparecido em Buenos Aires em 1976, às vésperas do golpe militar argentino, seu caso representava uma das mais dolorosas lacunas na história recente da nossa cultura. A justiça argentina confirmou a identificação, trazendo um fechamento aguardado por familiares, amigos e admiradores do músico.

A Última Noite de Tenório Jr. em Buenos Aires

A data fatídica foi a madrugada de 18 de março de 1976. Tenório Jr. estava em Buenos Aires, acompanhando Vinicius de Moraes, Toquinho, o baixista Azeitona e o baterista Mutinho em uma turnê pelo Uruguai e Argentina. Após um show memorável na renomada casa de espetáculos Gran Rex, na Avenida Corrientes, o pianista teria deixado um bilhete para Toquinho, com quem dividia um quarto no Hotel Normandie, no centro da capital argentina. A mensagem dizia que ele sairia para comprar cigarros e um lanche. Ele nunca mais voltou.

Por quase cinquenta anos, seu paradeiro permaneceu um enigma. As investigações da época foram obstruídas pelo clima político tenso que precedeu o golpe militar argentino de 24 de março, mergulhando o país nos anos mais sombrios de sua história, com repressão e desaparecimentos em massa.

A Identificação e o Fim de Uma Longa Espera

A virada no caso veio recentemente. A identificação do corpo, agora atribuído a Tenório Jr., foi possível através de impressões digitais. As digitais do músico estavam em dois órgãos argentinos dedicados a buscas de pessoas desaparecidas durante a ditadura. Um minucioso cotejamento dessas informações, realizado apenas agora, permitiu a confirmação. Os restos mortais foram encontrados na interseção entre a Avenida General Belgrano e a Panamericana, na província de Buenos Aires, e a morte teria ocorrido apenas dois dias após seu sequestro, em 20 de março de 1976.

A investigação será agora aprofundada pela renomada Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), especializada na identificação de restos mortais de vítimas de ditaduras. O objetivo central é desvendar as circunstâncias exatas da morte do pianista Tenório Jr. e quem ordenou seu assassinato.

O Legado e as Perguntas que Permanecem

Para Ruy Castro, colunista e estudioso da música brasileira, esta é uma descoberta histórica. “É uma descoberta para a história de uma família, da música brasileira e das ditaduras: a argentina, que cometeu o crime, e a brasileira, que o encobriu. Cinquenta anos depois, Tenório revive“, afirma. Marta Rodríguez Santamaría, ex-mulher de Vinicius de Moraes, que viveu intensamente a angústia da busca, expressou um sentimento agridoce: “Triste pensar hoje que, em todas aquelas semanas em que Vinicius passou na Argentina buscando ajuda para encontrar o amigo, ele já estava morto.

Ao longo dos anos, diversas teorias tentaram explicar o desaparecimento. A mais aceita sugeria que o músico, com sua aparência de artista – cabelos longos, comuns na época –, teria sido confundido com um “subversivo” ou líder montonero, em um período de intensa repressão. Outras hipóteses, como uma busca por drogas ou um “affair” secreto, também circularam, mas não diminuem a crueldade do crime. A verdade exata do que aconteceu na delegacia da Rua Lavalle, onde ele possivelmente foi levado, espancado e morto, ainda precisa ser revelada.

Tenório Jr.: Um Gênio da Música Brasileira

Nascido em 4 de julho de 1941, no Rio de Janeiro, Tenório Jr. foi um prodígio que floresceu no efervescente cenário da Bossa Nova e do jazz. Aluno de Moacir Santos e integrante do lendário grupo Os Cobras, ele se destacou pelo improviso e por uma abordagem vanguardista no sambajazz e bossajazz nos anos 60. Sua mão esquerda “baterística” e sua harmonia avançada o colocavam à frente de seu tempo, fazendo uma ponte entre o som das boates e o palco de concerto.

  • Berço Artístico: Iniciou as célebres jam sessions do Little Club, no Beco das Garrafas, em Copacabana, aos 21 anos.
  • Discografia: Gravou o LP “Embalo” em 1964, um marco na música instrumental brasileira, com a participação de nomes como Paulo Moura e Raul de Souza.
  • Colaborações: Trabalhou com gigantes como Edu Lobo, Nana Caymmi, Chico Buarque, Gal Costa, Milton Nascimento, e foi o último pianista a se apresentar com Vinicius de Moraes e Toquinho antes de seu desaparecimento.

Para Ruy Castro, “Tenório Jr. era o melhor pianista de seu tempo, genial e moderno“. Sua carreira, porém, foi tragicamente interrompida. O impacto de seu desaparecimento não foi apenas a perda de um homem, mas a supressão de uma trajetória musical que, segundo muitos, poderia ter redefinido os rumos da música brasileira. A repressão expropriou uma possibilidade histórica.

Memória e Justiça: O Hotel Normandie e o Futuro

A memória de Tenório Jr. tem resistido. O Hotel Normandie, local onde foi visto pela última vez, fixou uma placa em sua homenagem. Apesar de um incidente durante a pandemia, quando a placa original caiu, uma réplica foi prontamente reinstalada em dezembro de 2023 pela embaixada brasileira, garantindo que sua história não seja esquecida. A identificação dos restos mortais transforma este local de memória em um marco de justiça.

Do ponto de vista institucional, a jornada foi longa. Somente em 1997 o Estado argentino reconheceu formalmente sua responsabilidade nos crimes da ditadura, e em 2006, a família de Tenório Jr. foi indenizada no Brasil. A recente descoberta não é apenas um ato humanitário, mas uma prova concreta que pode reordenar as peças do quebra-cabeça e impulsionar uma investigação mais profunda sobre os mandantes do crime. É um ajuste de contas não só com a história, mas com a cultura de um país que perdeu um de seus maiores talentos.

O caso Tenório Jr. continua a ser um doloroso lembrete dos “anos de chumbo” e da importância de se preservar a memória para que tais atrocidades não se repitam. Sua música e seu legado, no entanto, são eternos.

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