Laerte e o Câncer de Próstata: Um Grito Urgente pela Saúde da Mulher Trans

Laerte e o Câncer de Próstata: Um Grito Urgente pela Saúde da Mulher Trans
Aos 72 anos, a icônica cartunista e chargista Laerte Coutinho, voz potente e irreverente da cultura brasileira, recebeu um diagnóstico que virou o mundo de cabeça para baixo: câncer de próstata. A notícia, que veio em setembro de 2023 durante exames de rotina para investigar “dores de velha”, não apenas trouxe à tona uma batalha pessoal, mas também acendeu um alerta crucial sobre a saúde da mulher trans e os tabus ainda existentes na medicina.
A Revelação e o Confronto com o Tabu Masculino
Após um resultado alterado de PSA (Antígeno Prostático Específico) e a confirmação por biópsia, Laerte, que é uma mulher trans, enfrentou a realidade de ter um câncer em um órgão tipicamente associado ao corpo masculino. “Mulheres trans precisam entender que possuem próstata e possuem um organismo que precisa ser cuidado de forma adequada”, enfatiza a cartunista.
Sua jornada com a próstata não era nova. Há cerca de duas décadas, Laerte já havia recebido um diagnóstico de hiperplasia prostática benigna, uma condição não cancerosa que causa o aumento da próstata e dificulta a micção. A solução foi uma raspagem, que resolveu o problema momentaneamente, mas talvez tenha gerado uma falsa sensação de segurança.
Com uma honestidade brutal, Laerte confessa ter sido negligente em relação aos exames de rotina para câncer de próstata. Ela aponta para uma herança cultural: “Sou uma mulher trans, mas eu tenho uma parte minha que é masculina. Carrego uma cultura masculina. E essa cultura masculina diz que homens não precisam ir ao médico. Esse é o maior mito que precisa ser enfrentado.” Essa reflexão é um convite poderoso para que todos, especialmente aqueles com próstata, revejam suas prioridades de saúde.
Compreendendo o Risco: Mulheres Trans e o Câncer de Próstata
Afinal, por que mulheres trans são suscetíveis ao câncer de próstata? O urologista João Brunhara, membro do comitê científico do Instituto Lado a Lado pela Vida, explica que a resposta está nas características fisiológicas de nascimento. Embora a transição de gênero possa envolver terapia hormonal (com estrogênio e progesterona) e cirurgias de redesignação sexual, a próstata geralmente não é removida devido aos riscos elevados de complicações como incontinência urinária e sangramentos, sem benefícios diretos para a percepção de gênero ou saúde da mulher trans.
A terapia hormonal, que bloqueia a produção de testosterona, pode reduzir o risco de desenvolver o câncer de próstata, pois a testosterona é um fator de estímulo importante. Contudo, ela não elimina o risco por completo. Estudos sugerem que o risco pode ser de duas a dez vezes menor para mulheres trans em terapia hormonal, mas a pesquisa ainda é limitada e sem consenso definitivo.
Laerte, por sua vez, optou por uma transição que não incluiu cirurgia ou hormonização, o que significa que seu risco de desenvolver o tumor era o mesmo de homens cisgênero. Após o diagnóstico, a decisão foi pela prostatectomia radical por laparoscopia, realizada em dezembro de 2023.
Rastreamento e Acompanhamento: Diretrizes Essenciais
Para mulheres trans, o rastreamento ideal do câncer de próstata segue recomendações similares às de homens cisgênero:
- PSA anual a partir dos 50 anos.
- Ou a partir dos 45 anos, se houver fatores de risco, como histórico familiar da doença, origem afrodescendente ou obesidade.
É vital que mulheres trans conversem abertamente com seus médicos sobre seu histórico e necessidades específicas de rastreamento. Para mais informações sobre o câncer de próstata, consulte fontes confiáveis como o Instituto Nacional de Câncer (INCA).
A Recuperação e os Desafios Pós-Cirúrgicos
A cirurgia de Laerte foi um sucesso em termos de remoção do câncer, mas trouxe novos desafios. “Minha uretra ficou jogo livre. Está demorando a se readaptar”, relata ela, enfrentando uma incontinência urinária severa que tem tentado controlar com fisioterapia pélvica. Apesar das dificuldades, Laerte mantém o otimismo: “o câncer de próstata é um dos mais administráveis. Se você deixá-lo à vontade, é claro que ele vai matar você. Mas se você tomar providências, ele é domável, não é tão perigoso como outros.”
O Vazio na Medicina: Tabu, Idealização e Desinformação
A experiência de Laerte expõe uma lacuna profunda na prática médica. Letícia Lanz, psicanalista trans especialista em gênero e sexualidade humana, aponta para a “idealização da ‘mulher verdadeira'” ou da pessoa trans “100% mulher”. Essa visão, muitas vezes reforçada por movimentos sociais e redes sociais, leva ao negacionismo das condições biológicas, como a presença de uma próstata, transformando o exame de próstata em um tabu e resultando em negligência.
Brunhara corrobora, afirmando que “ainda não existe um protocolo unificado ou pacificado sobre como realizar o rastreamento do câncer de próstata em mulheres trans.” A maioria dos médicos no Brasil se forma sem um conhecimento adequado sobre gênero e suas implicações na prática clínica, perpetuando a desinformação.
Conclusão: Um Chamado à Consciência e ao Cuidado
A coragem de Laerte Coutinho ao compartilhar sua história é um presente inestimável. Ela não apenas personaliza uma luta contra uma doença comum, mas também ilumina a necessidade urgente de educação e sensibilidade na área da saúde trans.
É imperativo que a comunidade trans seja empoderada com informações, que os tabus sejam quebrados e que os profissionais de saúde se capacitem para oferecer um atendimento inclusivo e eficaz. A jornada de Laerte é um lembrete poderoso de que o cuidado com a saúde não tem gênero e deve ser uma prioridade para todos.
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